|
Para judeus o dinheiro é fértil, para cristãos é infértil |
Desde sempre a relação dos judeus com o dinheiro foi alvo de preconceito - desde piadinhas maldosas até os crimes mais brutais - e mesmo de uma velada admiração. A obra "Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo", de Jacques Attali, já abordada neste espaço, conta a história dessa conturbada relação.
Servindo-se de um paralelo cronológico a partir dos cinco primeiros Livros da Bíblia (Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), ou Pentateuco, chamado de Torá pelos Judeus, o autor tenta explicar os motivos históricos que impulsionaram o Povo Judeu a tomar essa postura não como opção, e sim por uma condição imposta pelas circunstâncias.
Quando a agricultura era vetor econômico, lhes foi proibido adquirir terras, e quando o escambo representava obter lucro, impediram-los de comerciar.
Tornaram-se então prestamistas e financiadores da economia mundial, prestando serviços que ninguém mais queria prestar, e devido aos riscos que tais atividades representavam, foram inventores do cheque, da letra de câmbio e outros títulos ao portador, bem como pioneiros em redigir cartas comercias, e em abrir casas bancárias.
Gritante é a discrepância com que o assunto é tratado pelo ponto de vista dos judeus e dos cristãos, católicos em especial.
Abaixo, destaco uma passagem do livro de Attali que, ao meu ver, elucida bem os porquês de tanta diferença:
Cristãos e Judeus Perante o
Dinheiro
Dinheiro fértil, dinheiro infértil
Os primeiros discípulos de Jesus são judeus praticantes. Seguem a
liturgia judaica e respeitam a Tora. Tendo reconhecido o Messias em Jesus,
esperavam convencer os outros judeus a aderirem a eles na expectativa do
retorno do salvador.
Mas, como o retorno do Messias se faz esperar e as conversões se
tornam mais raras, as relações ficam tensas. Os cristãos se dizem o "versus Israel",
suspeitavam de que os judeus amaldiçoam Jesus em suas preces e os acusam de
"deicídio". Alguns até murmuram que todas as desgraças dos judeus têm
sua origem no martírio de Jesus e no papel nele exercido pelos saduceus. Em
contrapartida, os judeus declaram heréticos os cristãos e os excluem das
comunidades e das redes comerciais.
Os dois ramos do judaísmo distanciam-se assim um pouco um do
outro. Paulo de Tarso, em desacordo com Pedro, atrai pagãos, antes
simpatizantes do judaísmo. As conversões ao cristianismo se aceleram na Ásia
Menor, na Grécia, na Síria, no Egito, em Roma, em Cartago. Em cada comunidade,
quando há fiéis em bom número, um padre é ordenado. Quando há padres
suficientes, estes elegem um bispo que, consagrado pelos bispos vizinhos, se
torna responsabilidade pelos padres e pelos fiéis de sua comunidade. A Igreja
ainda não tem Livro santo. Após a morte de Pedro, ela tampouco tem chefe. Este
será bem mais tarde, o bispo de Roma, no seio do Império dominante.
Paralelamente, crescem as diferenças entre as duas doutrinas
econômicas. Numa e noutra, acredita-se nas virtudes da caridade, da justiça e
da oferenda. Mas, para os judeus, é desejável ser rico, ao passo que, para os
cristãos, é recomendável ser pobre. Para uns, a riqueza é um meio de melhor
servir a Deus; para os outros, ela só pode ser nociva à salvação. Para uns, o
dinheiro pode ser um instrumento do bem; para os outros, os efeitos são
desastrosos. Para uns, todos podem usufruir do dinheiro bem ganho; para os
outros, ele não deve ser acumulado em nossas mãos. Para uns, morrer rico é uma
benção, desde que o dinheiro tenha sido adquirido com moralidade e que a pessoa
tenha cumprido todos os seus deveres em relação aos pobres da comunidade; para
os outros, morrer pobre é a condição necessária da salvação. Assim, Mateus
relata esta afirmação de Jesus: "E vos digo ainda: é mais fácil um camelo
entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus"
(19, 24). E Lucas, embora conclua a parábola do administrador infiel com a
frase ambígua ("E eu vos digo: fazei amigos com o Dinheiro da
iniqüidade" [16, 9]), com isso reconhecendo a força do dinheiro, logo acrescenta:
"Fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca" (6,35).
De fato, para os judeus, como vimos, extrair juros do dinheiro não
é imoral; e, se não deve fazer isso entre judeus, é por solidariedade, e não
por proibição moral. O dinheiro, assim como o gado, é uma riqueza fértil, e o
tempo é como um espaço a ser valorizado. Para os cristãos, ao contrário, assim
como para Aristóteles e os gregos, o dinheiro - tanto quanto o tempo - não
produz riqueza por si mesmo, é estéril; por isso, fazer comércio de dinheiro é
pecado mortal. Essa obsessão da esterilidade do dinheiro também remete ao ódio
à sensualidade, proibida fora do casamento. Para a nova Igreja, nada deve ser
fértil fora daquilo que é criado por Deus. Fazer dinheiro trabalhar corresponde
a fornicar.
*