Uma
visão sem preconceitos da
relação dos judeus com o dinheiro *
relação dos judeus com o dinheiro *
* Texto original de Marilia Pacheco Fiorillo
Os
fundadores da religião monoteísta foram também os pioneiros do espírito
capitalista – essa é a tese de Jacques Attali em Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo (tradução de Joana Angélica d'Avila
Melo).
Judeu franco-argelino, Attali foi por dez
anos conselheiro do presidente francês François Mitterrand, fundou o Banco
Europeu pela Reconstrução e Desenvolvimento e a PlaNet Finance, ONG de captação
de microcréditos para países pobres. Polivalente, entre seus trinta livros há ensaios,
biografias, romances e até uma peça em parceria com o ator Gérard Depardieu.
No
prefácio a Os Judeus, o
Dinheiro e o Mundo, o
presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, rabino Henry Sobel,
confessa que chegou a temer que o livro municiasse o anti-semitismo que associa
a imagem da comunidade à ganância – vide o judeu Shylock, de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, que chega ao cúmulo de
pedir uma libra da carne do inadimplente Antonio. Temor desnecessário, porém: a
graça do livro é exatamente a de devolver o insulto como se se tratasse de
elogio.
Não há nada de execrável com o dinheiro, sugere Attali.
Essa
tática bumerangue vem acompanhada de excelente bibliografia e uma escrita
coloquial, necessárias sobretudo pela ambição de abarcar, em 600 páginas, de
Abraão a Ariel Sharon.
De lá para cá, os judeus teriam sido tão detestados quanto desejados, pois indispensáveis em seus préstimos. Prova disso é que, a cada vez que uma perseguição começava, eles eram vítimas das acusações mais estapafúrdias, como a de bebedores de sangue ou portadores da peste, mas nunca foram chamados de escroques. Tal injúria não conviria aos próprios inquisidores, que num dia perseguiam e no outro pediam crédito, entre eles inúmeros papas.
Shylok, da obra "O Mercador de Veneza" |
Sem o financiamento dos judeus conversos, Colombo não
teria descoberto a América.
Sem o apoio dos banqueiros Rothschild, tesoureiros
da "Santa Aliança", Napoleão Bonaparte possivelmente não teria sido
derrotado.
Emprestar, mesmo que a juros elevadíssimos, era o passaporte para a tolerância: reis precisavam dos judeus para pagar suas guerras; comerciantes dependiam de seus créditos; até um modesto vizinho do vilarejo sabia a quem recorrer. O que nunca impediu, entretanto, violentas ondas de anti-semitismo nessa clientela.
Em Alexandria elas eram endêmicas. Os reis espanhóis Fernando
e Isabel, mais ela que ele, instigada por seu confessor dominicano, Torquemada,
retribuíram a generosa contribuição de Isaac Abravanel, que lhes permitiu
reconquistar Granada dos muçulmanos em 1492, com um decreto oferecendo aos
judeus a conversão forçada ou a expulsão.
Nessa
eterna convivência de soslaio, a era de ouro para os judeus foi sob as asas do
Islã. "Os judeus jamais conheceram melhor lugar para residir que esse Islã
do século VIII", escreve o autor. Os de Damasco receberam os muçulmanos
como libertadores. O califa Omar confiou-lhes a coleta de impostos e contou com
a ajuda de guerreiros judeus para conquistar Alexandria. O califa Harun
al-Rachid, o das Mil e Uma
Noites,cercou-se de conselheiros judeus, enviando um deles como seu
embaixador junto a Carlos Magno.
Pode não estar no Corão, mas está na Bíblia: abominável é a pobreza, o juro é sinal
da fertilidade da riqueza.
Essa saudável perspectiva vem desde Salomão, o mesmo
do Cântico dos Cânticos, que, ao inaugurar seu célebre Templo
no século X a.C., inaugurava também um sistema de taxação e o primeiro banco
com caixa-forte da história. Os juros (em hebraico, nechekh, que significa mordida) eram permitidos
só fora da comunidade.
Com o passar do tempo e a proibição, pela Igreja
Católica, de que os judeus exercessem outros ofícios, o papel de prestamista
não só foi o que lhes restou, como nunca os denegriu, ao menos do ponto de
vista rabínico.
Caricatura do judeu ávido pelo dinheiro |
A
paternidade do capitalismo, com licença, diz Attali, é dos judeus.
O ponto alto
do livro é o debate com o sociólogo alemão Max Weber, autor do célebre A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, para Attali uma
"suma de ignorância e ingenuidade". Weber dizia que os judeus haviam
inventado um "capitalismo de párias", de pura extorsão, em contraste
com a ética da poupança, da produtividade e da racionalidade próprias do protestantismo.
Com ironia, o autor argumenta que a "ética da poupança" weberiana, se
levada ao ideal, redundaria na derrocada do capitalismo, que necessita de
arrojo e risco, não de pacata mesquinharia.
Dois judeus que nunca esconderam
suas dificuldades com o dinheiro são citados: Karl Marx e Sigmund Freud. Marx,
a matriz do comunismo, relacionou o judaísmo aos males capitalistas. Freud
associou o dinheiro, simbolicamente, à matéria suja que se deve expelir. Attali
os trata como "fantasias" equivocadas sobre o tema.
A
força da presença judaica, sugere o autor, se deve à sua qualidade nômade,
cosmopolita, nos créditos concedidos, mas sobretudo na cultura disseminada.
Como diz o adágio: a primeira geração funda bancos, a segunda os dirige e a
terceira dá músicos, pintores e psicanalistas. É na identidade cultural, não
territorial, que esse povo vem se perpetuando – demograficamente irrisório,
culturalmente imponente. E se a globalização trará a multiplicação das
diásporas, "o mosaico movediço de que será feito o mundo", o livro de
Attali traz também uma lição sobre a necessidade urgente de demolir o muro dos
preconceitos. Afinal, Rute, a bisavó do rei Davi, nem mesmo judia era.
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